Quando Ella parou para ajudar um homem sem-teto em uma noite chuvosa, ela não fazia ideia de como aquele encontro mudaria sua vida profundamente. Um único olhar para o seu relógio de ouro desgastado fez uma onda de memórias invadir sua mente, revelando uma conexão que ela jamais imaginaria.
A chuva começava a aumentar enquanto eu tentava equilibrar minhas sacolas de compras, tentando manter meu cachecol no lugar. Era uma daquelas noites em que o frio grudava na pele, e eu mal podia esperar para chegar em casa. Estava no meio do estacionamento quando ouvi uma voz atrás de mim.
«Ei, querida, você deixou a carteira cair!»
Eu parei e me virei. Um homem estava sentado na calçada perto da entrada do supermercado. Ele segurava minha carteira com uma mão, balançando-a levemente. Meu coração deu um salto. «Ah, meu Deus, muito obrigada!» eu disse, correndo até ele. Eu devia ter deixado cair enquanto carregava as sacolas.
«Não precisa agradecer,» ele disse, entregando-a. Sua voz era rouca, mas gentil.
De perto, notei que ele parecia ter passado por muitas dificuldades. Suas roupas estavam velhas e desgastadas, e seu rosto estava marcado por rugas profundas. Mas os olhos dele… eles eram quentes, como se ele ainda visse o bem no mundo, mesmo que o mundo não tivesse sido bom com ele.
«Você tem certeza de que está bem?» perguntei, não conseguindo me conter.
Ele deu uma risadinha seca. «Claro, o máximo que posso estar. Não tem muito o que reclamar quando você não tem nada a perder.»
Essa resposta me atingiu mais forte do que eu esperava. Eu me movi desconfortável, segurando a carteira. A chuva estava ficando mais forte, e eu sentia o frio entrando pela minha jaqueta. Olhei para ele novamente, sentado ali ao relento, com nada além de um casaco fino para protegê-lo.
«Não posso simplesmente te deixar aqui fora,» falei impulsivamente. «Você precisa de uma carona para algum lugar? Ou talvez de uma refeição quente?»
Ele balançou a cabeça. «Você é bondosa, moça, mas eu tô bem. O pessoal sempre tem boas intenções, mas não quero dar trabalho pra ninguém.»
«Não é trabalho,» disse rápido. «Vamos, meu carro está ali perto. Pelo menos saia da chuva por um tempo.»
Ele hesitou, olhando para mim como se estivesse tentando entender se eu estava falando sério. Finalmente, se levantou, batendo as mãos nas calças.
«Tá bom,» ele disse devagar. «Só por um minuto. Você é boa demais, sabia?»
Eu sorri. «Já me disseram isso.»
Meu carro estava uma bagunça, com papéis e copos de café vazios por toda parte. Eu me apressei para limpar o banco do passageiro enquanto ele ficava do lado de fora, todo molhado.
«Desculpe pela bagunça,» falei, jogando as coisas no banco de trás. «Pode entrar.»
«Tá bem confortável aqui,» ele disse, entrando.
O calor do aquecedor o atingiu imediatamente, e ele deu um pequeno suspiro. Percebi como suas mãos tremiam enquanto ele as colocava em direção ao ventilador.
«Qual é o seu nome?» perguntei.
«Harry,» ele respondeu. «E o seu?»
«Ella,» respondi.
«Bom, Ella, obrigada por isso. Eu não esperava sair daquela calçada hoje à noite.»
Eu lhe dei um sorriso pequeno, não sabendo o que dizer. Já tinha visto pessoas em situações difíceis antes, e Harry me lembrava de alguém que simplesmente tinha caído no lado errado da sorte.
«Eu não vou te deixar dormir aí fora essa noite,» falei firme. «Tem um motel aqui perto. Eu posso te arranjar um quarto.»
Ele me encarou por um momento, depois fez um pequeno aceno com a cabeça. «Tá bom. Mas só uma noite. Não quero que você gaste dinheiro comigo.»
«Fechado,» disse eu.
O motel não era nada de mais, mas estava limpo. Ajudei ele a carregar algumas sacolas de comida que eu havia pego para ele—uns sanduíches, frutas e água engarrafada. Harry olhou para o quarto como se tivesse acabado de entrar em um palácio.
«Isso é mais do que eu tive em muito tempo,» ele disse baixinho.
«Não é nada,» eu disse a ele. «Fique à vontade. Vou te deixar descansar logo.»
Ele tirou o casaco e colocou-o sobre a cadeira. Quando esticou as mãos para tirar as luvas, eu vi—um relógio de ouro no seu pulso. Meu coração parou.
Não. Não podia ser.
«De onde você tirou esse relógio?» perguntei, a voz tremendo.
Ele me olhou, confuso. «Isso? Eu tenho ele há anos. Por quê?»
Eu fiquei olhando para ele, com a respiração presa na garganta. Eu conhecia aquele relógio. Já o tinha visto antes, em alguém que eu nunca pensei que fosse ver novamente.
«Harry…» Minha voz quebrou. «Seu nome é mesmo Harry?»
Ele franziu a testa, me estudando. «Não. É Alex. Por quê?»
Eu senti como se o chão tivesse sumido debaixo de mim.
«Alex,» eu sussurrei. «Sou eu. Ella.»
Eu tinha cinco anos de idade novamente, em cima de um banquinho na cozinha brilhante. Alex estava ao meu lado, suas mãos segurando as minhas enquanto eu cuidadosamente despejava gotas de chocolate em uma tigela de mistura.
«Boa, garota!» ele disse, sorrindo. O riso dele era profundo e caloroso, como uma música favorita.
Aqueles dias pareciam um sonho. Alex me tratava como se eu importasse, como se eu pertencesse.
Mas não durou.
Lembrei das brigas entre ele e Linda—primeiro quietas, depois mais altas com o tempo. Um dia, Linda fez as malas e foi embora sem dizer adeus. Alex tentou manter tudo em ordem, mas sua saúde começou a falhar. Os serviços sociais vieram logo depois, dizendo que ele não podia mais cuidar de mim.
Chorei no dia em que me tiraram dele. Alex me abraçou forte, sua voz quebrando enquanto ele prometia: «Eu vou te ver de novo, Ella. Eu sempre vou estar aqui para você.»
Mas nunca mais o vi.
Agora, naquele pequeno quarto de motel, mal consegui respirar. «Alex,» disse eu, minha voz tremendo. «Sou eu. É a Ella.»
Ele me encarou, as sobrancelhas franzidas, como se não conseguisse acreditar no que estava ouvindo. «Ella?» ele repetiu, a voz mal um sussurro.
Eu acenei com a cabeça, as lágrimas escorrendo pelo meu rosto. «Você cuidou de mim quando eu era pequena. Eu morava com você e com a Linda. Eu nunca esqueci de você. Nem por um dia.»
Por um longo momento, ele não disse nada, seus olhos procurando os meus. Então, a compreensão apareceu, e o rosto dele se desfez.
«Ella,» disse ele, a voz quebrando. «Oh, meu Deus. Olha você. Você se tornou uma jovem tão linda.»
Eu joguei meus braços ao redor dele, o abraçando com toda a força que eu podia. «Eu achei que nunca mais fosse te ver,» eu disse entre soluços.
«Eu também pensei o mesmo,» ele murmurou, a voz carregada de emoção. «Nunca parei de me perguntar onde você foi parar, como estava.»
Sentamos na cama, e eu contei como reconheci o relógio de ouro. Ele olhou para ele, esfregando o mostrador gasto com o polegar.
«Foi um presente da Linda para mim,» ele disse suavemente. «É a única coisa que eu tenho daqueles tempos.»
«O que aconteceu?» perguntei gentilmente. «Como você acabou… assim?»
Ele suspirou, o peso dos anos na sua voz. «Depois que você foi levada, tudo desmoronou. Linda ficou com a casa no divórcio. Eu fiquei doente—diabetes, problemas cardíacos. As contas médicas me deixaram sem nada. Quando não pude mais trabalhar, não restou nada. Sem família, sem amigos. Só a rua.»
Ele olhou para baixo, os ombros caindo. «Faz tanto tempo, Ella. Eu esqueci como é viver, não só sobreviver.»
Lágrimas voltaram a encher meus olhos. «Você costumava cuidar de mim,» disse firme. «Agora, eu vou cuidar de você.»
Nas semanas seguintes, cumpri minha promessa. Paguei para Alex ficar no motel pelo tempo que precisasse. Todas as noites, depois do trabalho, eu passava por lá com compras ou refeições quentes.
«Eu não posso deixar você fazer tudo isso,» Alex disse uma noite, balançando a cabeça.
«Já é tarde demais,» brinquei, colocando uma sacola de roupas novas que eu tinha comprado para ele. «Além disso, você não tem escolha. Eu sou teimosa, lembra?»
Entrei em contato com algumas pessoas que conhecia. Meu chefe no escritório de advocacia me conectou com uma organização sem fins lucrativos local que ajudava pessoas sem-teto a encontrar empregos. Com a ajuda deles, Alex começou a trabalhar meio período em um centro comunitário, fazendo manutenção e outros serviços.
«Isso é estranho,» ele admitiu no seu primeiro dia. «É como se eu estivesse começando de novo aos 60.»
«Começar de novo é melhor do que desistir,» eu disse.
Devagar, mas com firmeza, Alex começou a reconstruir sua vida. Sua saúde melhorou assim que ele começou a fazer exames regulares, e sua confiança começou a voltar. Ver ele sorrir novamente foi como ver o sol sair entre as nuvens.
Alguns meses depois, Alex se mudou para um apartamento pequeno, a poucos minutos de ônibus do trabalho. Ele parecia mais saudável e feliz do que eu nunca o vi. Eu o visitava com frequência, levando o jantar ou apenas sentando e conversando por horas.
A última vez que vi Alex, ele estava na porta do seu apartamento, acenando enquanto eu ia embora. Ele acabava de voltar do trabalho, com seu relógio de ouro brilhando ao sol.
«Até logo, Ella!» ele gritou.
«Sempre,» eu respondi.
Dirigindo para casa, não pude deixar de sorrir. A vida havia dado uma volta completa, e tudo parecia certo.
A bondade, percebi, sempre encontra seu caminho de volta até você.