Foi logo depois das 5h. A casa estava em silêncio, esse tipo de silêncio que pressiona o seu peito. Imaginei que ia esgueirar-me para a cozinha, fazer um café antes do caos de compromissos, alarmes e lembretes.
Mas a luz acima do fogão já estava acesa.Sentado no banquinho em seu manto, a cabeça nas mãos, o boné de quimioterapia escorregando ligeiramente de um lado. A chaleira ainda nem tinha começado. A caixa de cereais estava aberta, mas intocada.
Ela não me viu no início.
Eu estava ali, completamente imóvel, apenas observando—a respirar-lenta, desigual, como se o peso de tudo estivesse acumulado em seus pulmões.
Então ela sussurrou alguma coisa. Não para mim. Não alto.
Para o escuro.»Não sei como continuar fingindo que não estou com medo.”
Foi a primeira vez que a ouvi dizer em voz alta. Nem para as enfermeiras, nem para mim, nem mesmo para ela, na verdade. Apenas … fora.
Eu queria ir até lá. Eu realmente fiz.
Mas então ela lentamente levantou a cabeça, olhou diretamente para a cadeira vazia em frente a ela, e disse:
«Você ainda está orgulhoso de mim, mesmo agora?”
E foi aí que percebi—
Ela não estava a falar com a escuridão.
Ela estava a falar com ele. Ao pai dela. Sentava-se naquela mesma cadeira todas as manhãs, sempre com palavras cruzadas e Café preto. Morreu há dois anos. Em silêncio. Um ataque cardíaco durante a jardinagem. Não adeus. Acabou de desaparecer.
Ela ainda fala com ele às vezes. Nunca interrompo.
Mas naquela manhã, parecia diferente. Como se ela precisasse que ele respondesse.
Eu finalmente entrei, com cuidado para não assustá-la. Ela virou a cabeça lentamente e ofereceu um sorriso cansado. O tipo de sorriso que você dá quando fica sem os verdadeiros.
«Não conseguia dormir?»Eu perguntei gentilmente.
Ela assentiu. «Ou talvez eu tenha dormido demais. É difícil dizer mais.”
Deitei água na chaleira e coloquei-a no fogão. Nenhum de nós disse nada durante algum tempo. O silêncio não era estranho. Apenas … cheio.
«Eu ouvi você», eu disse baixinho.
Ela olhou para as mãos. Suas unhas eram quebradiças, seus dedos tremiam ligeiramente. «Eu não quis dizer isso em voz alta.”
«Você deveria dizer mais em voz alta», respondi. «Você não precisa carregar tudo sozinho.”
Ela deu de ombros. «Eu sei. Mas não quero assustar ninguém.”
«Você não está me assustando», eu disse.
E essa era a verdade. O que mais me assustou foi o silêncio. O fingimento.
A chaleira começou a cantarolar, e eu me ocupei fazendo duas canecas. Um para mim, black. Um para ela, meio leite, dois açúcares, quase nenhum café. Apenas o calor.
Quando o coloquei à sua frente, ela estendeu a mão e depois fez uma pausa. Seus dedos pairavam acima da caneca.
«Meu pai teria me dito para parar com isso», disse ela. «Ele dizia:’ pare de sentir pena de si mesmo, garota. Levanta-te e vai.’”
Sorri um pouco. «Ele também costumava chorar em comerciais de cães. Não o deixes enganar-te.”
Ela riu disso—apenas um sopro de som, mas real.
«Ele ficaria orgulhoso de você», eu disse.
Ela não respondeu imediatamente. Ela apenas olhou para o vapor subindo de sua caneca.
«Você acha que sim?»ela perguntou finalmente.
«Eu sei que sim.”
Há algo de estranho em ver alguém que amas travar uma guerra invisível. Do lado de fora, ela parecia quase bem. Um pouco mais pálido, um pouco mais fino. Mas a batalha estava dentro dela. Calma, cruel, constante.
Sentámo-nos lá até o sol começar a entrar pela janela. Ela pediu-me para a ajudar a passar por umas caixas mais tarde naquela manhã. Disse que queria limpar o armário.
Não sabia que ela se referia ao armário dele.
Ele guardou tudo. Receitas de 1984. Um lenço velho que ela o tricotou no Liceu. Mesmo seus chinelos ainda estavam bem colocados perto da porta, embora ninguém os tocasse há mais de um ano.
Passámos horas a classificar. Ela não parava para se sentar, mas estava determinada.
«Por que agora?»Eu perguntei quando ela dobrou um de seus cardigans.
«Acho que preciso abrir espaço para a vida que ainda tenho», disse ela. «Não o que perdi.”
Isso bateu-me com força.
Encontrámos um antigo álbum de fotografias perto do fundo de uma gaveta. Ela folheou lentamente, sorrindo para fotos de bolos de aniversário, viagens de pesca, sua formatura do ensino médio.
Então ela fez uma pausa.
Era uma fotografia dos dois a dançar na cozinha. Deve ter dez anos. Ele segurava as mãos dela, a meio do giro, o rabo-de-cavalo dela a voar atrás dela. Ela tocou na imagem como se ela desaparecesse.
«Ele sempre me fez sentir como se eu pudesse fazer qualquer coisa», ela sussurrou.
«Você ainda pode», eu disse a ela.
Mas acho que ela não acreditou.
As semanas seguintes foram difíceis. Os tratamentos deixaram-na exausta, enjoada, esgotada. Alguns dias ela não saiu da cama. Outros, ela fingiu que estava tudo bem e assou pão de banana para os vizinhos.
Então, uma noite, cheguei em casa para encontrá-la não na cama, mas fora. Sentado no alpendre. Sem pelos agora, envolto num cobertor pesado, descalço.
«Você vai congelar», eu disse, correndo para pegar suas meias.
Ela balançou a cabeça. «Só precisava de ar. E estrelas.”
Sentei-me ao lado dela e, durante muito tempo, nada dissemos.
Então ela disse algo que ficou comigo.
«Eu pensei que se eu continuasse fingindo ser corajoso, eu me tornaria corajoso. Mas não funciona assim, pois não?”
Pensei nisso.
«Não», eu disse. «Mas talvez ser honesto sobre ter medo—isso também é corajoso.”
Ela assentiu lentamente. «Estou apavorado. Mas ainda estou aqui.”
«Ainda aqui», repeti.
Essa foi a nossa frase. Nos dias mais difíceis. Quando as varreduras voltaram pouco claras. Quando as sobrancelhas caíram. Quando ela não conseguia manter a sopa para baixo.
Ainda aqui.
E então algo inesperado aconteceu.
Começou a pintar.
Certa tarde, cheguei a casa e a mesa de jantar estava coberta de papel, pincéis e tubos de tinta acrílica. Ela olhou para cima, com uma faixa azul na bochecha.
«Eu não conseguia dormir», disse ela. «Então comecei a pintar.”
Pintou árvores. Caras. Tempestades abstratas. Pôr-do-sol.
Pintou a cadeira onde o pai costumava sentar-se.
E depois pintou-se. Não como ela era — mas forte. Poderoso. Vivo.
Seu médico viu as pinturas durante uma visita domiciliar e perguntou se ela consideraria mostrá-las no centro de bem-estar local. Ela riu primeiro. Então disse Talvez.
Um mês depois, eles organizaram uma pequena exposição. «Ainda Aqui: Arte Através Da Recuperação.»As pessoas vieram. As pessoas choraram. Ela até vendeu duas peças.
Naquela noite, ela chorou mais do que eu jamais a tinha visto.
«Não porque eu esteja triste», disse ela. «Porque me sinto como eu novamente. Mesmo um pouco.”
Havia um quadro que ela não venderia. Aquele dela e do Pai. Não baseado numa fotografia. Só de memória. Ele na cadeira, ela de pé ao lado dele, ambos sorrindo.
Ela pendurou-o na cozinha.
Todas as manhãs, depois disso, sentava-se em frente a ela. Café na mão. A falar com ele.
Meses se passaram. Alguns bons, outros horríveis. Mas as varreduras começaram a parecer melhores. Os tumores estavam a diminuir. Sua força voltou de pequenas maneiras-fazendo caminhadas mais longas, cozinhando sua sopa favorita, rindo com mais frequência.
Ela começou a ser voluntária no centro de bem-estar. Ministrar uma aula de arte uma vez por semana. Ajudar os outros a encontrar a sua voz novamente.
Um dia, chegou uma mulher da sua idade, recentemente diagnosticada. Ela estava chorando, dizendo que não sabia como poderia fazer isso.
Minha esposa ajoelhou-se ao lado dela, pegou sua mão e disse: «Eu também não. Mas ainda estou aqui. E você também será.”
Aquela mulher acabou por pintar um girassol. Brilhante e esperançoso. Agora está pendurado no corredor do centro.
E depois, a reviravolta que nunca esperámos.
Sobre o que deveria ser um acompanhamento de rotina, o médico entrou parecendo pálido. Houve uma confusão. Um erro na biopsia original. O tipo de cancro que ela tinha não era o que pensavam.
Foi agressivo, sim. Mas, na verdade, mais sensível a um plano de tratamento diferente.
O último ano-embora incrivelmente difícil-nem sequer foi a abordagem mais eficaz.
Mudaram-na imediatamente para o novo protocolo. Em poucas semanas, os progressos foram ainda mais significativos. O cancro recuou. As suas contagens sanguíneas melhoraram.
Estávamos zangados no início. Furioso, a sério. Como poderiam ter cometido tal erro?
Mas depois disse algo que nunca esquecerei.
«Se eles não tivessem cometido esse erro, eu poderia nunca ter começado a pintar. Talvez nunca tivesse abrandado. Talvez nunca tivesse aprendido o quão forte sou.”
Essa foi a reviravolta.
O caminho errado levou-a ao lugar certo.
Ela ainda tem de ser monitorizada. Ela ainda tem dias em que o medo se infiltra. Mas ela está viva. Realmente vivo.
Ela dá três aulas por semana. Ela escreve pequenas notas no verso de cada quadro que vende—mensagens de esperança, de sobrevivência, de não fingir mais.
A cadeira na cozinha ainda está lá. E todas as manhãs, ela senta-se com o seu café e diz: «Ainda aqui, Pai.”
E sento-me em frente a ela, agradecida por cada respiração que ela dá.
Porque, às vezes, o mais poderoso é nunca ter medo.
É estar com medo e fazê-lo de qualquer maneira.
Então, se você está lendo isso e está no escuro, espero que se lembre—
Você não precisa ter medo de ser forte.
Só tens de ficar.
Ainda aqui.
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